Escrevo no domingo e sem onisciência, não sei se vamos ter ou não ter
os tais embargos infringentes que promovem o esquecimento e revogam os
crimes. Embargos que algumas almas brasileiras estão certas de que terão
o direito de invocar até mesmo no Juízo Final. Aliás, porque não ter
também embargos no futebol, na pobreza, na fome e quando sabemos do
roubo do nosso dinheiro por autoridades que embargam como malfeitos
triviais, crimes da mais alta gravidade?
Sem saber o futuro, comento a sessão do STF que terminou num empate
significativo. Acompanhei os argumentos do ministro Marco Aurélio Mello
rebatidos pelo ministro Luiz Roberto Barroso com requintada veemência -
esse estilo nacional de matar com luvas de pelica -, que faz parte de
nosso modelo de discussão entre "autoridades" que vem sendo sufocado por
um avassalador viés igualitário.
Entre nós, o culpado é a vítima. É a mulher que compele o estupro; é a
criança que demanda a surra. O ladrão do dinheiro público (que rouba,
mas faz); e o populista convencido de que sabia como transformar o
Brasil que articula um plano para comprar o Congresso Nacional, traindo a
democracia, como foi o caso desse "mensalão", são sempre vítimas
indefesas, sujeitos à fúria da multidão. "Mensalão", aliás, é um
eufemismo. O que ocorreu foi uma deslealdade para com o direito de
competir pelo poder. Violou-se a promessa de honrar os cargos concedidos
pelo povo em eleições livres.
Por mais que um regime legal ajude os poderosos, ele não anula os
crimes. Não foi o STF que produziu o mensalão, foram as manobras
delinquentes dos membros da cúpula governamental petista que,
descobertas, acionaram o Supremo. Esse tribunal moralmente soberano e
isento (no sentido de ter consciência dos seus conflitos de interesse)
que é, além de tudo - e esse é um ponto crucial da dinâmica
institucional brasileira -, o limite e a fonte central da nossa
legitimidade democrática. O STF é (ou seria) o ponto final de que, mesmo
no Brasil, há uma fronteira definitiva entre a malandragem e a traição
aos princípios democráticos.
Como proceder quando os crimes não foram cometidos por indivíduos sem
eira ou beira, mas pela própria elite no poder? A isonomia é a maior
dificuldade de um sistema relacional - uma sociedade grávida de
hierarquias e de brutais desigualdades formais e informais entre seus
membros. Entre nós a lei é relativa. Temos uma inconcebível multidão de
polícias, leis e regimes jurídicos. O crime sai da curva dependendo do
seu autor. Para tanto, nossos legisladores regram sem a preocupação com
contradições, criando as brechas que são o apanágio de quem tem bons
advogados e possui sólidos laços com o poder.
Marco Aurélio Mello denunciou com seu saber e para a minha
perplexidade que "o sistema não fecha". Optou pelo bom senso. Bom senso
que tem a ver com o serviço que presta aos seus semelhantes sem o que
nem ele nem o STF teriam legitimidade. Já o ministro Barroso segue no
rumo oposto. Ele rejeita as "manchetes" e a opinião pública, mas - em
compensação - personaliza inconscientemente os valores do velho
familismo brasileiro. Pois imaginando que individualizava, deu um
exemplo tirado do fundo do nosso patrimonialismo. E se forem réus o seu
filho, pai ou irmão - perguntou - como você decidiria ao saber que há um
recurso? Para o egrégio ministro Barroso, a resposta seria um seco e
óbvio a favor do réu. Pouco se vê, penso eu que nada entendo de Direito,
uma tese que tão claramente abandona a avaliação dos crimes e focaliza a
vulnerabilidade dos réus diante do fantasma de uma multidão.
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