
Autor: João Cabral De Melo Neto
Temos aqui, neste trabalho em versos, a narrativa de Severino, retirante pernambucano que percorre o rio Capibaribe e, a caminho de Recife, vai tomando contato com a morte e a miséria conhecidas. Uma dessas mortes acontece por emboscada, em função da disputa com aqueles que têm a posse da terra. Severino conversa com os “irmãos das almas” e descobre que o homem havia sido morto a bala. “Ave-bala” que procura sempre mais espaço... Segue o rumo, porém temeroso de perder-se pois o rio, naquele trecho, secara.
Encontra pessoas velando um outro defunto. Resolve pedir emprego mas descobre, em conversa com uma senhora rezadora, que aquilo que ele aprendeu, não serve para se manter ali. Pensa em interromper a viagem, mas Severino quer mesmo manter sua vida, passar dos trinta anos.
Chega até a região da Zona da Mata e, apesar da terra se apresentar mais branda e “macia”, encontra mais um velório. Emocionado e triste, apressa o passo para logo chegar ao Recife. Lá, avista um muro onde resolve encostar-se para o descanso. Ouve a conversa de dois coveiros. Percebe que as pessoas ricas (usineiros ou banqueiros) ficam numa parte mais destacada, pagam boas gorjetas, enquanto os retirantes, quando morrem, nem são notados, sendo enterrados de graça. Seria melhor, diz um deles, sacudi-los de qualquer ponte, pois são um povo que desce para o litoral sem razão.
Desiludido, Severino vai para uma ponte do Capibaribe. Acredita que, enquanto peregrinou pelo sertão, até aquele lugar, seguiu seu próprio enterro. Lá, nesta ponte do cais, encontra, pela primeira vez, um pouco de esperança na pessoa do mestre carpina José. No diálogo que segue, percebemos uma ponta de angústia suicida, porém essa idéia fatal é interrompida pelo anúncio do nascimento do filho do carpinteiro. Muitas pessoas aparecem, na casa de José, para saudar o recém-nascido. Dentre elas, duas ciganas sendo que uma prediz o futuro do menino como sendo igual ao do pai. Já a outra antecipa que a vida não será sempre “daninha” e o menino irá trabalhar numa fábrica. Os vizinhos e amigos vão louvando a vida nascida, mesmo que franzina e severina. Com isso, José fica com a palavra tentando convencer Severino a não se atirar fora da ponte e da vida.ATENÇÃO
Regionalista, Cabral produziu seu auto em versos que têm redondilhas menores e até eneassílabos. Com economia vocabular (em prosa, se assemelha a Graciliano), e nos apresenta um retirante que passa da desilusão para a esperança e o otimismo, tendo enfrentado a miséria, a fome e as mortes de outros Severinos, seguindo o rio-guia Capibaribe, como se esse fosse uma estrela e ele um pastor, meio rei Mago, preparando-se sem saber para saudar o nascimento da vida e do otimismo, como se vê nas falas finais de José, mesmo com a profecia triste de uma das ciganas. A ponte teria esse sentido de transição para vida melhor, rumo à morte pela água.
Com o patriarcalismo político predominando desde o império, passando pela aristocracia rural no poder, depois as ditaduras de Getúlio Vargas e a militar, fica realmente difícil viajar pelo século vinte e não topar com literatura participante, engajada, como nela se destacaram Lima Barreto, Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, João Cabral, Antonio Callado ou mesmo Érico Veríssimo, só para ficar em meia dúzia. A questão da terra, a falta de instrução e a miséria cultural vão desanimando o homem do campo e da cidade que passa querer apenas o conforto material. Nesses anos oitenta e noventa, fim de século, a história de Severino se repete, piorada, pois a miséria do campo invadiu a cidade e aqueles que podem se armam; os mais afortunados mudam de país e outros, com mais sensibilidade, ficam, falam, compõem, pintam, solidarizam-se com a necessidade de participação maior na vida social do país, lutando pela vida, para que o desânimo não custe amanhã uma guerra civil. Sem falar na reforma agrária, citada sarcasticamente no texto de Cabral...
Muito sintomático é o caso do movimento Sem-Terra, causa engulhos em muita gente. O descontrole é geral, mas ninguém comenta os saques que esse capitalismo vem fazendo em nossa economia, não cuidando da saúde, tampouco da educação. Falta informação e boa fé. Contra isso ninguém diz coisa alguma. Ao invés de se debater logo a guerra no campo, os nossos governantes e muita gente em volta preocupam-se em seguros de vida, planos de saúde particulares ou construção de condomínios fechados. Enfim, essa vida severina é fruto da omissão de muita gente como nós e, nesta hora, tomar consciência dela, já é um passo. Pelo menos isso.
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